
O último dia do Seminário de Saúde Mental e Políticas Públicas, promovido pela Assembleia Legislativa do Paraná por meio da Frente Parlamentar da Promoção de Saúde Mental e a Escola do Legislativo, foi dedicado à juventude. Ao longo da semana, de 15 a 19 de setembro, o evento reuniu especialistas de diversas áreas para debater estratégias de cuidado e promoção da saúde mental na população. No encerramento, o Auditório Legislativo da Assembleia recebeu discussões voltadas aos cuidados e às políticas públicas direcionadas à saúde mental de jovens e crianças.
A deputada Ana Júlia (PT), proponente da iniciativa, avaliou o evento como muito positivo, ressaltando os cinco dias de intensos debates e disseminação de conhecimento. “Temos um acúmulo de sugestões e proposições de profissionais da área e da sociedade. Agora vamos investigar, analisar e observar os dados para amadurecer políticas públicas e legislações. Não é um problema individual, é um problema coletivo, e precisamos atuar em conjunto para promover a saúde mental.”
Medicalização, diagnósticos precoces e internet
O último dia do seminário começou com a fala da psicóloga Tamires Lombardi Mezzon, mestre em estudos de gênero, psicoterapia e adolescência pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Ela apresentou uma análise sobre a forma como a sociedade constrói e entende o período da adolescência. Destacou que o aumento da expectativa de vida e a saturação do mercado de trabalho resultaram em uma escolarização mais longa e em uma preparação estendida para a vida adulta, prolongando esse momento de transição.
“Se compararmos com a adolescência de nossos avós, veremos que praticamente não se compreendia esse período como entendemos hoje. Atualmente, os jovens são cobrados por mais estudo, mais preparo e mais tempo de escolarização antes de ingressarem no mercado”, afirmou.
Na visão de Tamires, marcada por uma perspectiva histórico-cultural, a constituição psíquica do ser humano é moldada pelas condições sociais, econômicas e culturais. Ela citou dados preocupantes, como o fato de que mais da metade dos adolescentes brasileiros é composta por negros e negras, além de destacar que um terço da população indígena é formado por crianças. Também chamou a atenção para números alarmantes de suicídio na faixa etária de 10 a 19 anos: cerca de mil casos anuais entre 2012 e 2022, segundo a Secretaria de Saúde. Esses elementos, segundo a psicóloga, evidenciam a importância de discutir a adolescência de forma ampla e sensível às diferentes realidades e marcadores sociais.
Outro ponto central de sua fala foi a crítica à medicalização da vida e ao avanço de diagnósticos que, em vez de considerar os fatores sociais que produzem sofrimento, reduzem os problemas a agrupamentos de sintomas. Para Tamires, essa lógica, reforçada pelo neoliberalismo e pela indústria farmacêutica, silencia adolescentes e jovens, transformando o sofrimento em questões meramente clínicas.
“Quando reduzimos o sofrimento a sintomas, deixamos de enxergar suas origens sociais e culturais, e isso impede que adolescentes se reconheçam como sujeitos autônomos capazes de intervir em seus próprios contextos.”
A médica e doutora em saúde da criança e adolescência, Luci Pfeiffer, coordenadora do programa Dedica, alertou para uma realidade preocupante: a violência vivida dentro do ambiente familiar. Segundo ela, 96% dos pacientes atendidos pelo programa são violentados em casa, geralmente por pessoas com quem mantêm laços de afeto e confiança. “Esse sofrimento é muito mais profundo do que quando a violência vem de um estranho, porque é praticada justamente por quem deveria proteger”, destacou.
Pfeiffer denomina esse fenômeno de “violência quinta”: novas formas de amarras, que antes eram físicas e hoje aparecem de maneira mais disfarçada, como na medicalização precoce das crianças. Ela criticou o excesso de diagnósticos e a consequente prescrição de medicamentos sem base científica sólida. “Hoje temos diagnósticos absurdos. Crianças que chegam ao Dedica já medicalizadas, com associações de quatro ou cinco remédios. Há casos em que até bebês recebem rótulos de síndromes inexistentes”, afirmou.
Para Luci, muitos sinais que acabam sendo tratados como transtornos psiquiátricos são, na verdade, consequências diretas da violência e do desamparo familiar. “A gente brinca que fazemos ‘cura de autismo’, porque muitos quadros que chegam rotulados são, na verdade, fruto de maus-tratos”, completou.
Outro ponto abordado por Pfeiffer foi o impacto da internet e das redes sociais na formação de crianças e adolescentes. Segundo ela, a ausência de limites e de cuidados no ambiente familiar abre espaço para que esses jovens busquem reconhecimento e afeto em ambientes virtuais, muitas vezes inseguros. “Temos crianças de 10, 11 anos já viciadas na internet, criando várias personalidades até que uma seja aceita. É um campo fértil para a sedução de predadores escondidos atrás das telas”, alertou.
A médica lembrou ainda que os desafios perigosos que circulam nas redes são uma das causas de mortes de adolescentes todos os anos. Para a coordenadora do Dedica, é fundamental resgatar a função estruturante da família e a responsabilidade dos adultos no processo de formação psíquica das crianças. “Nos primeiros anos de vida, é o sim e o não que ensinam o que é certo e o que é errado. Quando isso não acontece, não é mimo, é desamparo”, reforçou.
Pfeiffer defendeu que a medicalização não pode substituir o cuidado e a presença afetiva. “O remédio não resolve o que faltou de acolhimento e de amor. Ele tapa buracos, mas não constrói estruturas. Se não entendermos isso, vamos continuar perdendo crianças para a violência, para a exclusão e para a própria morte.”
Políticas públicas
O secretário de Políticas Públicas do governo federal, João Victor, chamou a atenção para os impactos do excesso de trabalho na saúde mental, especialmente diante das novas ferramentas tecnológicas que mantêm os profissionais conectados em tempo integral. “A partir do momento em que saímos de casa, já estamos revisando material, respondendo mensagens, trabalhando sem parar. Isso inevitavelmente nos adoece, porque ficamos sem saber quando começa a vida pessoal e quando termina a profissional”, afirmou.
Ele lembrou que a conciliação entre vida pessoal, familiar e educacional é uma das principais demandas das juventudes há mais de uma década e segue sem solução efetiva. João Victor ressaltou ainda que a sobreposição de jornadas, somada à ausência de redes de cuidado, agrava a desigualdade e compromete o bem-estar social. “As nossas crianças estão em tempo integral sem direito ao cuidado adequado, porque as famílias diminuíram de tamanho e já não há aquela figura que cuidava de várias gerações. O cuidado é trabalho, e precisa ser reconhecido como política pública”, destacou.
Segundo ele, a falta desse reconhecimento gera jornadas exaustivas, semelhantes às de séculos atrás, que ultrapassam os limites físicos dos trabalhadores. “Estamos vivendo jornadas abusivas que adoecem, e precisamos enfrentar esse desafio agora, pois já deveríamos ter feito isso há 50 anos.”
O secretário nacional da Juventude, Ronald Sorriso, destacou que o reconhecimento da juventude como sujeito de direitos no Brasil é um conceito recente, consolidado apenas há 15 anos com a inclusão do tema na Constituição Federal pela Emenda Constitucional 65.
Antes disso, explicou, a transição entre a adolescência e a vida adulta era vista apenas como uma fase biológica, sem atenção específica do poder público. “Até então, você saía da proteção do Estatuto da Criança e do Adolescente e ficava basicamente largado à própria sorte”, disse.
Ele lembrou que, após a criação da Secretaria Nacional da Juventude em 2005 e a aprovação do Estatuto da Juventude em 2013, o país passou a estruturar políticas de Estado voltadas para essa faixa etária, garantindo direitos como saúde, educação e participação social. No entanto, Sorriso chamou a atenção para a ausência da saúde mental no texto legal, apontando que o tema só ganhou centralidade nos últimos anos, diante das transformações provocadas pelas novas tecnologias e pelo mundo do trabalho.
Em sua fala, o secretário ressaltou que, apesar do arcabouço legal, muitos jovens ainda permanecem sem acompanhamento adequado na saúde pública após a fase pediátrica, o que contribui para diagnósticos tardios e agravos severos. “Muitos se sentem saudáveis e deixam de procurar o sistema de saúde, mas a doença pode estar ali, silenciosa, até que apareça em estágio avançado, como vemos hoje em tantos casos de câncer em jovens adultos”, alertou.
Ele também destacou que a saúde mental é atravessada por condições sociais, econômicas e culturais, o que reforça a necessidade de políticas públicas específicas e regulamentadas para essa população. “A juventude precisa de uma rede de atenção integral, que considere desde a prevenção até o cuidado continuado. Já deveríamos ter regulamentado essas diretrizes, porque não basta ter previsão legal se não houver implementação prática.”
Participações
Em discurso emocionado na Assembleia Legislativa do Paraná, a deputada estadual Flávia Francischini, primeira vice-presidente da Casa de Leis, compartilhou sua experiência como mãe de um jovem autista e destacou os desafios enfrentados pelas famílias que convivem com o transtorno. “O nome da minha palestra é Acordei Mãe de uma Criança Autista, e já faz dois anos que venho falando sobre isso. Não é fácil, principalmente quando não estamos 24 horas com essas crianças, que se tornam adultos extremamente inteligentes e conscientes do que possuem. O meu filho Bernardo tem autismo, TOD, bipolaridade e esquizofrenia. É um pacote completo que exige da gente uma dedicação redobrada”, afirmou.
A deputada ressaltou a importância do debate sobre os riscos da internet e da pornografia na vida dos adolescentes e disse ter se identificado com as falas apresentadas durante a sessão.
A vereadora de Pinhais, Miss Preta, destacou a necessidade de maior seriedade no enfrentamento ao bullying nas escolas estaduais. Para ela, é urgente criar protocolos que envolvam também as famílias, a fim de mostrar que a prática é errada. “Se não houver essa conscientização, os adolescentes que praticam bullying hoje se tornarão adultos que repetirão esse ciclo no futuro”, alertou.
A psicóloga Renata Teixeira Parapinski, do CAPS AD de Colombo e doutoranda em Psicologia pela UFPR, ressaltou o simbolismo da iniciativa ser liderada por uma mulher em um espaço historicamente dominado por homens. “A liderança da deputada Ana Júlia reafirma o papel inegociável das mulheres na formulação de políticas públicas”, afirmou.
Para Renata, participar do evento foi uma oportunidade de renovar forças e reforçar a importância do engajamento coletivo na luta por justiça social. “Nossas vozes somadas contribuem para uma sociedade mais justa e inclusiva, em que todos sejam reconhecidos como seres humanos”, completou, registrando seu agradecimento pela experiência de diálogo democrático e transformador.
"SEMINÁRIO SOBRE SAÚDE MENTAL" 19/09/2025
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