A urgência e os desafios para a articulação de fundos econômicos que promovam a igualdade racial e o combate ao racismo – como a PEC da Reparação, em tramitação no Congresso Nacional – foram temas de uma audiência pública realizada nesta quarta-feira (5) na Assembleia Legislativa do Paraná. Representantes do governo federal, do Executivo paranaense e curitibano, além de movimentos sociais e entidades, participaram do debate.
"O objetivo é ampliar a discussão sobre a necessidade da reparação histórica”, ressaltou o deputado Renato Freitas (PT), presidente da Comissão de Igualdade Racial da Alep e organizador do evento. “O Brasil teve mais tempo de escravização do que convívio com a comunidade negra em liberdade. Os impactos permanecem e determinam o perfil da pobreza e dos processos de exclusão. Ela nos coloca numa super-representação no sistema carcerário e no obituário, e numa sub-representação em espaços de poder”.
“O país por muito tempo sobrevive às custas da população negra. Foi construído através da escravização, entre várias questões que deixam a gente hoje à margem num processo de injustiça social muito grande”, complementou a vereadora de Curitiba Giorgia Prates (PT), que também propôs a audiência pública. “A importância desse debate é fazer com que a reparação histórica realmente aconteça. Qualquer política depende do orçamento”.
Fundo nacional visa à reparação histórica
No cerne do debate esteve a Proposta de Emenda à Constituição 27/2024, batizada de “PEC da Reparação”, que está sendo apreciada no Legislativo federal. Ela insere um capítulo na Carta Magna que cria o Fundo Nacional de Reparação Econômica e de Promoção da Igualdade Racial (FNREPIR) para a promoção cultural, social e econômica da população negra brasileira, visando diminuir as desigualdades sociais.
Segundo o texto, o instrumento financeiro será alimentado com recursos de indenizações de empresas que lucraram com a escravidão; doações internacionais, dotações orçamentárias e outras fontes previstas em lei. A União deverá destinar, no mínimo, R$ 20 bilhões, com aporte anual de um vigésimo do valor (R$ 1 bilhão, no caso do valor mínimo). Apresentada em julho de 2024, a proposição tem autoria de mais de 160 deputados e deputadas federais de diversas siglas.
A proposta em tramitação prevê ainda que o fundo terá natureza privada e contará com um Conselho Consultivo e de acompanhamento, formado por representantes do poder público e da sociedade civil. Aspectos como organização, distribuição de recursos, fiscalização, controle e constituição do Conselho devem ser definidos posteriormente por meio de lei.
Foi justamente a governança do programa de fomento o tema da fala de Florence Marcolino Barboza, que abriu a audiência representando o Ministério da Igualdade Racial. A pasta defende que esse direcionamento seja conduzido pelo Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir). Criado em 2010, ele articula estados e municípios na implementação de políticas e serviços destinados à superação do racismo.
"O Sinapir está em todas as unidades federativas e tem adesão de mais de 296 municípios. É uma grande teia de articulação e a base para a gestão descentralizada e o controle social do fundo", frisou Barboza, que atua como coordenadora-geral de Políticas para Juventude Negra da Diretoria de Políticas de Combate e Superação ao Racismo. A servidora federal também destacou o caráter participativo do órgão, semelhantes ao Sistema Único de Assistência Social (Suas) e ao Sistema Único de Saúde (SUS), que garantem o caráter democrático das decisões.
Ela defendeu ainda que o programa de fomento seja vinculado não somente a projetos, mas que os recursos possam também ser direcionados a políticas públicas e programas.
Aloísio Justino do Nascimento, presidente do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial do Paraná (Consepir), ressaltou a necessidade de articulação social para garantir que o fundo de fato seja implementado. “Política pública não existe sem fomento, sem dinheiro. O primeiro passo foi dado, a PEC está tramitando bem. Mas é a nossa mobilização que vai fortalecer essa luta.”
Os participantes apresentaram diversas sugestões ao texto. Conforme Renato Freitas, as sínteses e recomendações colhidas na audiência pública incrementarão um relatório que será encaminhado para a elaboração do projeto nacional. Debates semelhantes estão sendo realizados em outros estados e também alimentarão o documento.
Paraná e Curitiba
A audiência também se deteve sobre a elaboração de iniciativas semelhantes em nível estadual e municipal no Paraná. Dentre elas, a realização em curso de repasses pelo governo do Estado, por meio do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial (Consepir), com o objetivo de promover iniciativas de combate ao racismo nos municípios paranaenses foi explanada por Ivânia Ramos dos Santos, diretora de Igualdade Racial, Povos e Comunidades Tradicionais na Secretaria de Estado da Mulher, Igualdade Racial e Pessoa Idosa.
Por meio dele, será repartido neste primeiro momento R$ 2,4 milhões entre 39 municípios paranaenses – os valores variam de R$ 50 mil a R$ 100 mil, conforme o tamanho da população negra de cada cidade. A transferência é realizada entre o fundo estadual e os municipais, coordenada pelos conselhos dos entes, que poderão designar o montante para projetos em áreas como saúde, segurança e educação, entre outros.
“[O Paraná] é o primeiro Estado com um sistema de governança estruturado para a igualdade racial. [Os municípios] vão ter recursos para trabalhar a pauta, como ações de sensibilização e projetos. A iniciativa respeita a autonomia do município de entender as necessidades que têm relação com esse recurso”, ressaltou Ivânia.
A gestora destacou requisitos obrigatórios para o recebimento dos recursos, como a existência de política local sobre o tema, conselho municipal e fundo municipal destinado ao assunto. A pasta está auxiliando os municípios a implementarem as exigências, segundo a diretora.
No âmbito de Curitiba, Edson Lau, superintendente da Secretaria Municipal da Mulher e Igualdade Racial, destacou a sanção da Lei nº 16.586 no último mês. A norma instaurou o Fundo Municipal de Promoção da Igualdade Étnico-Racial (FMIR) na capital. Ele ressaltou o esforço para garantir recursos. “Encaminhamos pedidos para que emendas dos vereadores possam capitalizar o fundo, para que possamos bater à porta das empresas, para que recursos municipais sejam alocados”, afirmou. “O fundo estadual existe há 12 anos e só foi ter a capacidade de ser capitalizado e ter recursos agora”, ressaltou o gestor, ilustrando os desafios para garantir o funcionamento da iniciativa.
Lau destacou ainda a necessidade de o governo do Estado e o federal prestarem assessoria constante às prefeituras nos aspectos burocráticos e operacionais. “Os mais de 300 municípios do Paraná não terão condições e recursos humanos para se organizar, criar CNPJ, abrir conta e receber instrução para abrir o fundo”, alertou.
Dados do racismo
O preconceito e as contradições sociais que assolam a população negra foram traduzidos por Cristiane Viana de Jesus, assessora técnica da SEED e consultora individual da Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI). Pessoas negras correspondem a 82% das vítimas de letalidade policial, enquanto as brancas somam apenas 17,6%. Mulheres negras são a maior parcela das vítimas de feminicídio (63,6%) e estão entre as maiores vítimas de mortes violentas intencionais (68,6%).
“Ao longo da história, o sistema social e econômico beneficiou a população branca, enquanto a população negra, tratada como mercadoria, foi excluída do acesso a direitos fundamentais e da distribuição justa de riquezas”, destacou. No Paraná, a população negra é de 34,3%, segundo o Censo de 2022 do IBGE. Deste total, 30,1% se declara parda, enquanto 4,2% preta. É o estado com a maior população negra do Sul, anotou a pesquisadora.
Manuela Vaz Rocha, que participou do debate em nome da Coalizão Negra por Direitos, anotou ainda que 75% das pessoas em situação de pobreza são negras. A população preta e parda é também 67% das vítimas de homicídio. Hoje, 35% dos jovens negros entre 15 e 29 anos estão fora da escola e do trabalho. “O Brasil tem uma dívida histórica. São mais de 300 anos de escravidão. A riqueza construída é às custas da nossa exploração. A exclusão histórica de acesso à terra, à educação e ao poder até hoje temos esse reflexo”, frisou. “A escravidão acabou, mas o racismo segue estruturando o nosso país.”
Mesa
Também compuseram a mesa Camille Vieira da Costa, coordenadora do Núcleo de Promoção e Igualdade Étnico-Racial da Defensoria Pública do Estado do Paraná; Clemilda Santiago Neto, assessora especial da Secretaria Estadual da Mulher, Igualdade Racial e Pessoa Idosa (Semipi); e Constance Moreira Modesto, conselheira estadual e diretora de Igualdade Racial da OAB/PR.
AUDIÊNCIA PÚBLICA - REPARAÇÃO E EQUIDADE: FUNDO DE IGUALDADE RACIAL
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