
Questões relacionadas à saúde mental, índices de alcoolismo acima da média, drogadição, depressão e o dobro de casos de câncer em comparação à população paranaense foram alguns dos alertas apresentados na audiência pública que debateu o adoecimento do trabalhador portuário no Paraná. O evento, realizado na noite desta quarta-feira (17) na Assembleia Legislativa do Paraná, buscou discutir causas, consequências e possíveis soluções para reduzir o número de doenças e mortes desses profissionais.
“Muito se fala sobre o Porto de Paranaguá, sobre sua importância para o país, para a economia e o quanto gera desenvolvimento e renda para o Paraná. Mas pouco se fala dos trabalhadores que tornam tudo isso possível. Esses trabalhadores estão invisibilizados, enfrentam cargas e horários de trabalho extremamente estressantes, abusivos, e têm seus direitos retirados todos os dias”, afirmou a deputada Ana Júlia (PT), proponente do evento. “Vamos investigar esse problema. Saio impactada com dados assustadores e preocupantes que beiram a crueldade”, completou a parlamentar.
Entre os números apresentados está o levantamento da Nossa Saúde, empresa responsável pelo plano de saúde de cerca de seis mil profissionais do Porto de Paranaguá desde 2016. Segundo o médico Murilo Mendes, a incidência de câncer entre os estivadores é o dobro da registrada no restante do estado. “A prevalência de casos de câncer na carteira da empresa é de 0,51% (872/168.914), enquanto na população portuária é de 0,98% (62/6.322)”, detalhou.
A CEO da empresa, Dulcimar de Conto, reforçou a gravidade da situação. “É muito preocupante a questão oncológica e hematológica do porto. Os médicos nos procuraram alertando para a frequência de câncer, especialmente entre os estivadores. Só no último ano tivemos quatro transplantes de medula óssea entre os trabalhadores, quando na nossa carteira total costumamos ter apenas um por ano. Os casos envolvem não apenas os profissionais, mas também seus familiares”, destacou.
O presidente do Sindicato dos Estivadores de Paranaguá e Pontal do Paraná, João Fernando da Luz, lembrou que os trabalhadores cumprem jornadas exaustivas, lidam com a poluição do ambiente portuário e a exposição a produtos químicos, o que tem resultado em um aumento significativo de doenças, incluindo o câncer. “Essa situação é alarmante, pois não afeta apenas os trabalhadores, mas também seus cônjuges e filhos”, afirmou.
O gerente de Saúde e Segurança do Trabalho do Porto do Paraná, José Antonio Sbravatti, reconheceu a relevância do debate. “Entendemos que o porto engloba diversas operações, cada qual com seus riscos específicos e medidas de controle correspondentes. Consideramos essencial compreender o conteúdo desta pauta, suas causas e consequências, para oferecer suporte na busca por soluções que melhorem as condições de trabalho”, declarou.
Patrick Felix Couto, vice-presidente do Sindicato dos Trabalhadores Marítimos do Paraná, abordou a situação dos tripulantes de rebocadores, que estão trabalhando 168 horas semanais sem troca de turno a bordo. Essa escala de sete dias trabalhados por sete de folga foi implementada durante a pandemia de COVID-19 para restringir a circulação de pessoas, mas permanece em vigor. “As empresas mantêm essa jornada mesmo após o fim das restrições, aproveitando-se da situação. Antes, o regime era a ‘semana espanhola’, com ciclos alternados de trabalho e folga, o que garantia maior descanso. A atual jornada exaustiva está afetando gravemente a saúde mental dos trabalhadores”, relatou.
O auditor-fiscal do Trabalho Diego Alfaro destacou a dificuldade de fiscalização. “Nosso objetivo é tornar o trabalho menos degradante, mesmo operando com apenas 40% do efetivo que deveríamos ter no Paraná. É surreal o nível de exploração a que esses trabalhadores estão submetidos. Estamos falando do Porto de Paranaguá e ainda nem chegamos às doenças, pois paramos nos acidentes por falta de condições mínimas”, apontou.
Fábio Roberto Gama Encarnação, diretor operacional do Sindicato dos Estivadores do Espírito Santo (Setemees) e coordenador do Comitê de Saúde, Segurança e Previdência do Trabalhador na Federação Nacional dos Estivadores, reforçou a necessidade de dados precisos. “Há uma carência de informações sobre os profissionais portuários. Esses dados precisam chegar aos órgãos competentes para que políticas públicas específicas sejam desenvolvidas e aplicadas dentro do cais. É um debate imprescindível e urgente e parabenizo pela iniciativa inédita”, disse.
Participando de forma online, o doutor em Sociologia Política pela Universidade de Paris, Marcelo Schmidt, comparou a situação brasileira com a realidade francesa. “Não é uma questão apenas dos trabalhadores. Há relatos de que famílias inteiras morrem de câncer porque a esposa tem contato com a roupa do trabalhador e os filhos têm contato físico com o pai. Isso transforma o que deveria ser uma comunidade próspera em uma cidade de mortes”, destacou. Ele também defendeu pesquisas específicas sobre os materiais e mercadorias manuseados e a produção de laudos técnicos que possam embasar mudanças legislativas. “A vontade patronal deve se subordinar à vontade pública, que precisa ser protegida por lei”, afirmou.
A pesquisadora Patrícia Luzia Gomes, fundadora do Fórum Permanente para Estudos de Sofrimentos Relacionados ao Trabalho, também participou de forma remota. “É importante estarmos atentos e unidos para transformar os processos. O trabalhador não é doente, ele é o sintoma de um trabalho doente. Precisamos transformar essa realidade. Saúde não deve ser tratada como custo, mas como investimento. Não podemos permitir que o patronato decida como vamos viver e morrer”, defendeu. “Os portuários são as veias do mundo, a cadeia de suprimentos global depende deles e dos marítimos”, finalizou.
AUDIÊNCIA PÚBLICA - "O ADOECIMENTO DO TRABALHADOR PORTUÁRIO: CAUSAS, CONSEQUÊNCIAS E SOLUÇÕES"
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