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Artigo - Deputado Péricles de Mello

Péricles de Mello* O recente episódio sangrento na fazenda Syngenta, em Santa Tereza do Oeste, quando jagunços fortemente armados tentaram desalojar à força os sem-terra que ocupavam a área, provocando a morte de duas pessoas, serve para ilustrar uma situação terrível que o Brasil está vivendo. Cada vez mais, o recurso à violência é visto como a única possibilidade de solução de determinadas questões sociais pendentes. A esse respeito, o debate ocorrido na Assembléia Legislativa sobre o caso Syngenta foi esclarecedor. Nenhum deputado, por certo, defendeu a ação dos jagunços, tamanho o crime, mas os argumentos utilizados para responsabilizar os sem-terra pelos acontecimentos revelam uma clara leniência com um certo tipo de violência, com um certo tipo de autoria. Um dos argumentos: como é que os proprietários vão se defender se os sem-terra e o próprio governo do Estado desrespeitam decisões judiciais de desocupação? Outro: as lideranças dos sem-terra usam os trabalhadores como bucha de canhão. Outro ainda: o Brasil deve muito às grandes propriedades rurais, que estão promovendo as exportações e contribuindo para o crescimento da economia. Ressaltam desses argumentos algumas conclusões inelutáveis. A primeira é que o recurso à força armada não oficial é um expediente considerado válido, justo e meritório. A segunda é que a eclosão da violência e mesmo de mortes é uma conseqüência inevitável dessa ação que tranqüilamente se admite como legítima (só assim se pode entender o termo “bucha de canhão”). A terceira, considerada no presente contexto, é que a propriedade privada, particularmente a propriedade privada da terra, é vista como mais importante do que a vida dos que não têm terra. Deixemos essa questão, por ora, em suspenso. Passemos a outros fatos que se desenrolam no Brasil. Um deles trágico, em Curitiba: o filho de um conhecido jornalista foi executado por empregados de uma empresa privada de segurança, empresa que tem sido alvo de várias denúncias devido à truculência dos atos que promove. A pergunta que se impõe é: de onde deriva essa sensação de impunidade desses senhores, para os quais executar uma pessoa é um ato tão normal? Há uma relação direta e, na verdade, óbvia, entre a admissão do uso da violência e o crescimento real dessa violência. O exemplo do Rio de Janeiro é oportuno: com base em uma pesquisa que concluiu ser a população do Estado favorável ao uso da violência contra criminosos e traficantes, o governo de Sérgio Cabral adotou o enfrentamento como lema. Conclusão: nos primeiros nove meses de seu governo, o número de mortes violentas é 20% maior do que em igual período do ano passado. E não consta que essa política tenha resultado até o momento em diminuição da criminalidade. Na verdade, não é que a população espontamente apóie a violência policial. Ocorre que autoridades e meios de comunicação insuflam a violência como uma espécie de “vendetta” contra aqueles que desafiam os poderes constituídos. A população, desprotegida e sem outros horizontes, é impedida de ver outra saída. Mas essa “vendetta” não passa de expressão da impotência diante de um problema que as autoridades não conseguem solucionar. Nessa senda de violência, há um verdadeiro rio de violações dos direitos humanos e constitucionais básicos: desrespeito à segurança dos inocentes, invasão de domicílios sem mandados judiciais, detenções sem provas, execuções com tiros pelas costas, e por aí vai. O fato de se tratar das favelas cariocas é outro elemento que caracteriza o emprego corriqueiro da violência no Brasil. A forma como a criminalidade é vista tem claros fundamentos sociais. Um inocente morto na favela é um corpo sem rosto, sem identidade, sem direitos. Quando, no entanto, um membro das classes abastadas comete um crime hediondo, parece que todas as engrenagens sociais se movem para libertá-lo. Uma pesquisa divulgada nos últimos dias pela Fundação Getúlio Vargas revela que 85% dos consumidores de drogas no Brasil são brancos e 62% pertencem a classes mais altas. No entanto, a mesma pesquisa mostra que 47% dos jovens presidiários são negros ou pardos. Não que necessariamente haja uma relação direta entre consumo de drogas e crime. Mas não é corriqueira a associação entre drogas, crimes, negros e pobres? Voltando ao assunto do início desse artigo: o que é a morte de um sem-terra, de forma violenta, sem direito a defesa, como tantas vezes já aconteceu no Brasil, diante do direito sacrossanto à propriedade, no caso da propriedade da terra? Vamos esquecer a forma como essa propriedade foi consolidada no Brasil, via capitanias hereditárias, escravidão, grilagem, assassinatos, trabalho escravo ou semi-escravo. O que tem de mais a execução de um favelado? Estamos no meio de uma guerra onde quem pode trata de se defender, inclusive com o uso de recursos ilegais, porque a violência acaba recebendo o aval das próprias autoridades, com louváveis exceções. Termino citando uma notícia triste divulgada pela imprensa nacional. A bancada ruralista na Câmara dos Deputados cresceu quase 60% na atual legislatura e seus integrantes têm como uma de suas tarefas centrais barrar a tramitação de 11 projetos que, de uma forma ou outra, propõe punições a fazendeiros acusados de promover o trabalho escravo em suas propriedades. Acontece, e aí está minha tristeza, que a maior parte da bancada ruralista integra a bancada de apoio ao governo Lula, e não dá para evitar essa contaminação. A política deve ser democrática, pluralista, mas devemos sempre saber o nosso lado, qual o lado da mesa em que vamos sentar. A defesa da reforma agrária e dos direitos humanos fundamentais são princípios dos quais não podemos abrir mão, por mais difíceis que sejam as circunstâncias. Denunciar as violações desses direitos e os atos de violência, venham de onde vierem, continua sendo nosso dever.*Péricles de Mello é deputado estadual (PT), presidente da Comissão de Educação da Assembléia Legislativa do Paraná, e ex-prefeito de Ponta Grossa (2001-2004)
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